terça-feira, 29 de julho de 2008

HISTORIAS DE SALVATERRA ANTIGA - BLOG DO SR JOSÉ GAMEIRO



AS BOTAS DO MANEL GATO


Nos dias que passam persistem apenas dois dos cerca de 40 sapateiros que existiam em Salvaterra de Magos, nos últimos anos da primeira metade do século passado.

As oficinas destes artesãos eram pequenos espaços, à entrada das suas habitações, sendo muito poucos os que tinham outro sitio para laborarem.
Alguns na rua, tinham junto da porta, um corvo, ou gralha que, amestrados diziam alguns palavrões, daquelas “azedas” que a clientela, ou quem passava gostava de ouvir dizer – era uma graça!

Entre eles, havia duas figuras que andavam na boca do povo, pela sua originalidade. O Mestre Vital e o Manuel Gato.
O mestre-Vital, tinha a sua oficina na rua Direita, com a Trav. da Amoreira, era um homem alto, magro, mas já vergado pelo peso dos anos. Era solteiro, os seus últimos tempos de vida, passou-os junto dos seus primos, a família Lopes Rosa.

Vivia a causa republicana em Portugal, com grande convicção, pois desde muito novo, que se fez seu partidário, assistindo às aventuras e desventuras do seu percurso no país.
O seu entusiasmo era tal, que por volta de 1955, ainda dava azo a que rapazio de idade escolar, o incomodava à porta da oficina.

Oh, mestre Vital ! Quando chegam as tropas do Gomes da Costa !
Tirando os olhos do calçado que tinha entre-mãos, em cima dos joelhos, a resposta vinha serena: Olhem! estão a chegar às Cavalariças !!
Despachem-se depressa, não cheguem lá tarde !!

Um pequeno banco corrido de madeira, encostado à parede, dava para seis pessoas e um pequeno armário já carcomido pelo tempo, sem os seus oito vidros nas duas portas da frente, pois era esquartejada em cada uma, eram o seu mobiliário.

Era nas prateleiras do móvel, que guardava uma infinidade de pequenos instrumentos de trabalho como: os Bucetes para brunir a sola, os Costas Viras, as Cevelas de meia cana, a Régua de afiar as facas, a Cera para passar os fios de coser, a caixa das agulhas, as grosas e limas, pequenos martelos e alicates..

O móvel, apresentava-se esconso num dos lados, pois estava gasto um dos seus quatro pés. Para que não sofre-se qualquer acidente da clientela, no cimo deste, guardava o Candeeiro de vidro, a petróleo, que servia para aquecer os bucetes.

O Mestre Vital, era de uma disciplina desusada, pois para tirar ou colocar qualquer peça no armário, tinha de abrir sempre a fechadura da porta., facto notado que deu brado durante anos.

Por ali paravam durante o dia, um grupo de velhos amigos, que usavam de malandrice, sabendo da sua grande paciência Previamente combinado, um ou outro dava um pequeno encontrão no móvel e lá vinha o candeeiro ao chão. O mestre-Vital, recomendava " Tenham mais cuidado " e, de imediato tirava algumas moedas do bolso do colete, encarregando um dos presentes em lhe fazer o favor de comprar um outro candeeiro, na loja do Gaspar Rapitalho, junto à câmara municipal.
Os presentes, lamentavam o “acidente”, logo se solidarizavam, quotizando-se pagando o prejuízo, ficando o mestre-Vital muito agradecido e, enaltecendo o gesto praticado – era uma boa acção dos seus amigos.
Quando o candieiro, estava no chão, aquecendo o bucete de ferro, o próprio Gaspar Rapitalho, seu velho amigo, deixava cair um pingo de cuspo, na fita que estava a arder, ficando esta como a soluçar (devido ao contacto da água com o petróleo) até que se apagava. O Mestre, logo dizia:
Óh Gaspar, estão-te a vender o petróleo falsificado, deves reclamar !

O outro que deixou fama, foi o Mestre-Manel Gato, tinha a sua oficina em casa, lá para os lados da Fonte do Arneiro. Era um homem que rondava os 50 anos, mas muito brincalhão, uma dos seus diabretes, foi o caso das botas de um cliente.

Naquele tempo, a população da vila, era maioritariamente rural e muitos vinham a casa, só de quinze em quinze dias. De sábado ao cair da tarde até domingo à noite, altura em que regressavam ao campo.

Por isso, o dia de segunda-feira, era dia de sapateiros (dia de folga).
O calçado, especialmente a bota de homem, era de um cabedal ensebado e com cardas na sola., era comprado em dia de feira anual, no mercado de Marinhais, ou nas lojas de fancaria da vila.

Um certo dia, um cliente levou um par de botas para o mestre, pôr meias solas e cardá-las. O tempo combinado para o arranjo, há muito estava ultrapassado, os emissários enviados pelo cliente, passaram pela esposa, filhos e amigos.
A resposta era sempre a mesma. Estão a andar!
Certo dia, o dono das botas, encontrou o sapateiro, numa taberna existente junto da Igreja Matriz, com elas calçadas e, este com uma calma de gelar, respondeu ao reparo:
Rapaz, eu sempre disse a todos, que as botas estavam a andar, não viram, como tu viste, não tenho culpa, são ceguetas! Vai logo à oficina que estão prontinhas!
Assim, ficaram famosas as botas do Manel Gato.

*****
* Cavalariças: o cruzamento na EN 118 (Santarém/Coruche)
* Gaspar Rapitalho: Gaspar Maria Alexandre
José Gameiro